Acabo de ler este texto da Lya Luft publicado na revista VEJA desta semana, e achei que era algo que valia a pena todos lerem e pensarem um poco a respeito.
Boa leitura!
Para mim, bilhões e trilhões serviam para contar estrelas. De repente, essas cifras saem da TV ou do computador, para cair no meu colo: quase achei que o mundo ia se acabar, que a derrocada estava se instalando. Foi então que governos, bancos centrais e demais instituições financeiras começaram a soltar dinheiro. Dilúvio de grana entrando pelos bolsos que a tragédia das bolsas, alimentada por incompetência, arrogância, ganância e, dizem, medo, tinha esvaziado.
Bilhões, trilhões escorrem por aí, fazendo mais uma vez bancos e semelhantes estufarem bolsos e peitos. Voltou a confiança, o mundo talvez esteja salvo, nós estamos salvos. No momento em que escrevo, começa algum alívio, gente otimista fala até em euforia. Voltou a confiança, dizem, o que faltava era confiança. Os mais realistas mencionam o efeito do abalo não mais na área financeira, mas na nossa vida. Leio que a previsão para os próximos anos é de mais 20 milhões de desempregados no mundo.
De repente, espantada, em vez de alegrinha, lembrei-me de que essa mesma falsíssima generosidade socorrista poderia estar salvando da morte pela fome milhões, quem sabe bilhões, de seres humanos. Por que a ninguém ocorreu inundá-los com essas torrentes de dinheiro, para que não morressem miseravelmente de fome e abandono, diante dos nossos olhos, exibidos por jornal, internet e televisão?
Mas não foi para esse detalhe aborrecido (quem quer ainda contemplar aqueles corpos esqueléticos, os olhos imensos e desesperados, dos famintos deste mundo chato?) que se usou a inimaginável riqueza que salvaria bancos, banqueiros e empresas. Não muito longe, mas aqui mesmo, em nosso planeta, seria preciso talvez bem menos riqueza do que essa que agora se derrama, para que milhões de pessoas deixassem de morrer de fome, tivessem casa, roupa e saúde. Ninguém faz o suficiente, explodem os presidentes de organizações humanitárias, avisam os jornalistas que por lá se aventuram, reclamam os médicos compassivos e pessoas que não podem tapar olhos e ouvidos para tão desmedida calamidade.
Eu me pergunto com que artifício psicológico conseguimos sobreviver diariamente, dormir, sonhar, transar, comprar, conversar, negociar, tendo essa riqueza toda armazenada, enquanto milhões morrem por lhes faltar o mínimo, o mais essencial e simples. Crianças esqueléticas cobertas de moscas, que, com o olhar vidrado, ainda respiram, enquanto bilhões circulam, trilhões, em bolsos e bolsas privilegiados. Mas nós continuamos vivendo. Achamos que não temos nada com isso – o que é que eu posso fazer, afinal? São vidas humanas, é verdade, mas... E quando foram bolsas, bancos, valores não morais, todos os responsáveis se agitaram, sacudiram os ossos ou as banhas e, assustados, soltaram dinheiro.
Ainda se fala em "volatilidade", mas reina uma certa alegria porque as bolsas sobem, os bancos se salvam, tudo está quase resolvido, ainda mais por aqui, onde não haverá mais do que umas ondinhas bestas. Verdade que milhões continuam morrendo, agora mesmo. Não pela peste negra, não pela bomba atômica, mas porque lhes falta pão, remédio, interesse. Parecem uns bichos incômodos, não cavalos de raça, não cachorros de madame, não touros reprodutores: suas imagens chateiam como as dos cavalos de carrocinha nas regiões urbanas, surrados até a exaustão, ou as dos meninos magricelas que nos importunam na esquina. A gente desvia o olhar, mas agora sabemos que o dinheiro existe, tanto que nós, pobres mortais, nem conseguimos avaliar. Estava guardadinho, e agora escorre para os bolsos que vão de novo agilizar as bolsas, enquanto as vidas continuam se consumindo, milhões e milhões, aqui mesmo neste mundo globalizado.