Wednesday, April 23, 2008

Literatura um tanto prejudicial


Há alguns posts atrás comentei sobre o poder que os cheiros têm de despertar lembranças e hoje fui novamente lembrada disso. Eu ia chegando no meu prédio e quando entrei no hall senti um cheiro familiar - e não, não era o incenso da vizinha esotérica (private joke, especial para um dos meus leitores... :P). Era um cheiro de "impressão em papel jornal recém-tirada de dentro do plástico de proteção" que me fez voltar a adolescência. Já explico.

Quando eu tinha uns treze anos, eu, minha melhor amiga/quase irmã Sílvia e uma outra amiga nossa, a Simone (na época o trio era conhecido como Perereca, Tonelada e Meio-Quilo) só podíamos sair de casa no verão depois que nossos pais acordassem da "séstia" e então houvesse alguém para tomar conta dos nossos irmãos menores (respectivamente o Baxo, o Marinho e a Vivi). Assim, depois do almoço, por mais ou menos uma hora não tínhamos nada o que fazer, até que não me lembro quem descobriu um "lançamento" editorial (acreditam, NAQUELA ÉPOCA ainda era lançamento...): uns romances hoje em dia conhecidos como literatura cor-de-rosa, chamados Sabrina, Júlia e Bianca. Viraram a nossa mania. Líamos durante aquela hora e às vezes até por mais tempo. Comprávamos, trocávamos, comentávamos, enfim, eles passaram a fazer parte da nossa vida naquela e daquela época. E esses livrinhos, impressos em papel jornal para baratear o custo (come on, a gente comprava nas bancas de revista, no nosso caso a da pracinha ao lado da Figueira - que na época era a Padaria Aveiro) vinham sempre embrulhados em plástico. Daí, quando a gente abria, vinha aquele cheirinho, o mesmo que senti hoje de manhã. Foi uma viagem no tempo em menos de um segundo.
Mas, voltando aos livros, eles tinham um enredo que, hoje, vejo que não mudou nada desde os folhetins do séc. XIX, mas para nós naqueles anos românticos era o máximo. A história sempre acontecia em algum local distante ou exótico (Bali, Hawaii, Paris, New York). O mocinho (lindooooo, às vezes até meio vilão) fazia a heroína sofrer e depois descobria que estava perdidamente apaixonado - por ela, é claro! Ele lutava pelo amor dela, ou ela lutava pelo amor dele, mas no final tudo era lindo, maravilhoso, cor-de-rosa mesmo, e eles viviam happily ever after.

Chegamos enfim ao porquê do título desse post. A Sílvia uma vez disse tudo: "Rê, nós fomos estragadas por esses livros. A gente cresceu achando que quando fosse adulta ia ser uma mulher linda, independente e elegante, dessas que acaba passando férias ou morando naqueles lugares maravilhosos e exóticos dos romances. A gente acabou acreditando que era lá que a gente ia viver uma história de amor impossível e depois de mil desencontros o cara lindo de morrer ia finalmente acabar descobrindo que era louco pela gente, que era da gente que ele gostava na verdade, e que ele ia nos buscar onde quer que a gente tivesse ido chorar o coração partido (de preferência em um chalé muito fofo em alguma cidadezinha da costa da Inglaterra). E dali era só escolher o vestido de noiva e aproveitar o "felizes para sempre".

Pois é, crescemos assim, todas as três, acreditando nisso. Acreditando que, no final, tudo sempre iria dar certo, acreditando que as coisas seguiriam esse roteiro perniciosamente lindo e perfeito. Tudo culpa dessa literatura que pintou nossos sonhos de cor-de-rosa e nos fez eternas esperançosas do final feliz.

Hoje, com, certeza, nós três já nos demos conta de que nos tornamos mais lindas do que o esperado - no nosso interior. Já percebemos que nossa independência, nossa superioridade e auto-suficiência vai até o momento em que, como qualquer ser humano normal, "pedimos penico" ou "queremos colo", e que nossa elegância tem de ficar restrita a datas especiais, pois os filhos (dois da Sílvia, dois da Simone) e o pó de giz ou tinta de caneta para quadro (coincidência: sem querer, acabamos as três professoras!) não permitem blusas de seda, saia justa ou salto agulha no dia-a-dia. As férias ou moradia em lugares exóticos também foram, let's say, "adiadas", pelos mesmos motivos. O dito amor impossível se multiplicou em muitos, vários desse tipo, e entre altos e baixos descobrimos que o lindão estava mais pra sapo do que para príncipe encantado (quando não era um lobo em pele de cordeiro...), ou nos demos conta de que ele NUNCA vai descobrir que é louco PELA GENTE ou que JAMAIS vai ter coragem de CORRER ATRÁS DE NÓS até seja que fim de mundo for (quem conhece as nossas histórias pessoais vai reconhecer cada uma de nós aí :P). O chalezinho na costa da Inglaterra quando muito virou uma casa no Laranjal - a da mãe da Sílvia, a mesma da nossa adolescência, onde até hoje nos reunimos para colocar a conversa em dia (quando dá!). O vestido de noiva, bom, nós três passamos por ele, mas as boas lembranças de todos ficaram só nas fotos, enterradas em algum álbum: as outras a gente deixou pra lá, tocou em frente e tentou aprender com a experiência. E, finalmente, o "felizes para sempre" a gente deixou por menos, e hoje se dá por muito feliz se se consegue ser feliz por mais um dia.
Resumo da ópera: aprender isso tudo custou. Custou tempo, custou vida, suor, lágrimas, e doeu pra caramba. E o problema é que talvez tivesse doído menos se a gente não tivesse tido os olhos e o coração embotados pela cor-de-rosice dos tais romances, por essa literatura digamos assim um tanto prejudicial.

Claro que nós três hoje em dia sabemos que esses enredos não são reais (aliás NADA reais), que a vida não é assim MESMO, mas de uma coisa a gente não conseguiu se livrar: de sermos eternas esperançosas no final feliz. Sim, porque todas nós vamos, SIM, ser muito felizes, nem que seja um dia por vez, até que o tal de "para sempre", um dia, chegue.

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